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Os contos na clínica junguiana

A vaca nos contos de fadas: a vaquinha da terra

O animal como símbolo nos sonhos, mitos e contos de fadas – Helen I. Bachmann – Google Livros

A leitura deste momento está sendo o livro de Helen Bachmann. Uma excelente leitura para quem quer se aproximar do universo de sonhos, mitos e contos com animais. A dica de hoje será um conto, deste livro sobre a vaquinha da terra, de Martin Montanus, de 1559, que vale a pena ser lido. Afinal, os contos também fazem parte do imaginário. Quem não gosta de uma boa história?

“Um homem pobre e bom tinha uma esposa com quem teve duas filhinhas: a mais nova chamava-se Margaretinha e a mais velha, Aninha. Antes que as criancinhas tivessem crescido, a mãe morreu, e por isso o homem tomou outra esposa. Ora, essa mulher tinha inveja da Margaretinha e desejava muito a sua morte. No entanto, matá-la pessoalmente não lhe parecia uma boa ideia. Assim, atraiu para si com artimanhas a menininha mais velha, a fim de que esta lhe fosse leal e se tornasse inimiga da irmã”.

Essa mulher vai se juntar a filha mais velha e irá tentar se livrar três vezes de Margaretinha nos passeios à floresta profunda e escura. Nas duas primeiras tentativas elas falham. Afinal de contas, Margaretinha escuta escondida o plano macabro da madrasta e irmã; e busca ajuda com sua madrinha de batismo, que lhe ensina como escapar da armadilha delas.

Todavia, na terceira tentativa Margaretinha se perde delas na floresta e não consegue retornar ao seu lar ficando presa naquele lugar, sozinha. Quando ela já havia praticamente perdido a esperança de sobreviver, ela tem uma ideia: sobe numa árvore para avistar um povoado, uma cidade, algo que a ajude sair daquela situação.

E eis que ela vê uma fumacinha saindo ao longe e pensa: “ali há de ter alguém!” Era a casinha da vaquinha da terra. Ali ela vai passar um tempo com essa vaquinha que irá cuidar dela, com a promessa de não revelar o segredo da vaquinha mágica!

Ela teria leite e roupas finas, desde que ordenhasse a vaquinha ao amanhecer e anoitecer! E guardasse seu segredo. Porém, um tempo depois, sua irmã mais nova volta à floresta ‘arrependida’ pelo que fez, e vai à procura de Margaretinha e a encontra.

Pois bem: O que você acha que aconteceu? Margaretinha cumpriu sua promessa? Será que a vaquinha de Margaretinha foi para o brejo?

Margaretinha confia na sua irmã mais nova e acaba perdendo a vaquinha. Como a sua irmã Aninha estava ‘arrependida’ e lhe pediu perdão, ela se sensibiliza e acredita na ‘falsa resignação da irmã’, e acaba contando o segredo da vaquinha, pois não consegue segurar somente para si, já que era muito tagarela. Por que afinal de contas, de onde saíra aqueles belos vestidos de seda e como ela estava tão saudável naquele lugar tão distante?

Então, a irmã Aninha retorna para a casa e conta tudo à madrasta que planeja ir até lá para matar e comer a vaquinha.

A vaquinha sabia de tudo e prepara Margaretinha: “elas irão me abater e a ti irão submeter a tratamento pior”. A menina ficou muito mal e triste por ter contado o segredo da vaquinha. Mesmo assim, a vaquinha ainda a consola:

“Veja bem, o que está feito, está feito. Quando o açougueiro me abater, fica por perto e chora! Quando ele te perguntar o que queres diz: quero muito o rabo, o chifre e os cascos da minha vaquinha da terra… Depois, enterra o rabo na terra, sobre o rabo o chifre e sobre o chifre os cascos e não te afastes até o terceiro dia”.

No terceiro dia nascerá uma linda árvore que dará as mais belas e deliciosas maçãs. E esta árvore lhe fará uma mulher forte e poderosa. E somente você conseguirá apanhar estes frutos!

Mais tarde, um senhor poderoso passou por aquelas terras com seu filho adoentado. E quando ele viu aquelas belas maçãs quis comê-las. O senhor ordenou que levassem as maçãs ao filho, pois pagaria muito bem. Só que a irmã mais velha Aninha, não alcançava as maçãs, ou melhor: não podia! Nem sua madrasta conseguia! Apenas Margaretinha conseguiu. O senhor ficou tão admirado que a considerava uma mulher santa! E queria saber como conseguira tal proeza. Margaretinha conta toda a sua história ao senhor, inclusive o que sua irmã e madrasta fizeram com ela.

Ele então, a convida para ir embora dali. Margaretinha nem pestaneja. Aceita na hora e ainda leva consigo a sua árvore e seu pai, deixando para trás as mulheres malévolas de sua vida.

Este conto de magia nos apresenta a história de uma menina pobre e sem iniciativa, que se deixava maltratar e depois se transforma numa mulher grande e poderosa.

O conto inicia com a história de carência – a morte da mãe. O pai logo se casa com outra mulher e parece que não há tempo para o luto. Margaretinha sofre profundamente esta falta e isto influencia no seu desenvolvimento. Também é possível imaginar que como era a filha mais nova, deveria ser uma menina mais mimada, e estivesse distante da realidade da vida. Diferente da irmã mais velha que se aproxima facilmente da madrasta.

Ela lida com figuras negativas – irmã mais velha, madrasta (a inveja e a cobiça) e o pai (inútil); mas também, figuras mágicas – a vaquinha da terra e, depois de seu abate, suas partes que se transformam numa bela macieira que só Margaretinha era capaz de colher. Sua madrinha lhe dá os conselhos que obtém sucesso em duas vezes, mas na terceira ela sabe que a menina precisava aprender a lidar com autonomia. Bachamann cita que a menina tinha “um déficit de desenvolvimento”.

A madrinha sabe que ela precisa passar pela necessidades para poder crescer, sendo a “figura de ligação entre o real e o irreal” – mundo exterior e mundo interior – mundo mágico e simbólico. Dessa forma a vaquinha representa a maternidade positiva após a menina passar pelo profundo desamparo naquela floresta imensa e profunda (inconsciente). Como estava “sob pressão da emoção mais intensa, de medo pela sua vida” tem a ideia de subir numa árvore para encontrar uma saída. Logo, a necessidade nos faz mover. O conflito e a dor nos movimentam!

Na casa da vaquinha ela teve a oportunidade de se desenvolver, crescer e portanto aceitar receber ajuda e Florescer! Esse período de regressão não duraria para sempre. Após o amadurecimento da menina e seu fortalecimento, ela está pronta para voltar ao mundo externo e por isso, desobedece a vaquinha. Revela o segredo, ou seja, quebra a regra! Torna-se autônoma, livre.

Mas por conta da falsidade de sua irmã a vaquinha morre. No entanto, aquelas partes que, geralmente são descartadas no abate representam os valores especiais que a vaquinha da terra lhe deixou. Ela já não é mais aquela menininha boba e ingênua que aceita tudo. Ela se torna um símbolo de potência através da macieira. Segundo Carl Gustav Jung, o símbolo do Si-mesmo!

A história completa e a interpretação da autora estão disponíveis no livro. Recomendo a leitura!

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